Constituir duas holdings familiares, uma patrimonial, outra operacional, resolverá apenas parte do problema
Imagine uma família com avô e avó (fundadores), três filhos (duas mulheres e um homem), sete netos (três mulheres e quatro homens) com o seguinte patrimônio: uma fazenda produtiva, com gado e plantio, uma importadora e distribuidora de peças automobilísticas, uma dezena de apartamentos alugados e investimentos monetários em bancos nacionais.
Imagine agora que você é chamado para elaborar o planejamento patrimonial sucessório desta família e é informado que se soma ao quadro geral desenhado que o filho homem está à frente da propriedade rural, uma das filhas “toca” o negócio de autopeças e a segunda filha não mora no mesmo estado. Já os netos se dividem, alguns possuem interesse pelos negócios familiares, mas outros, não. Resumindo a sensação de alguns familiares: alguns membros da família consideram a fazenda um local produtivo e de futuro profissional, outros a enxergam como um belíssimo clube para o final de semana ou para uma temporada nas férias.
Para complicar um pouco mais o problema, os netos possuem idades e interesses diferentes, e seus pais nem sempre acham os presentes oferecidos pelos fundadores aos netos iguais entre eles, com o sentimento de que o neto primogênito, tal como o filho primogênito, é o “preferido”.
O primeiro passo neste planejamento patrimonial ilustrativo talvez não seja o jurídico.
Profissionais especializados podem facilitar a conversa entre os membros da família visando a implementar, com técnica, um processo de justiça familiar [1]. Certamente, serão aprofundados e trabalhados temas como comunicação, direito a voz, clareza na diferenciação entre problemas familiares e problemas dos negócios, a percepção de que mudanças ocorrem e as regras devem acompanhar tais mudanças, tudo para que todos os membros estejam engajados em construir um ambiente harmônico e justo, dia após dia.
Outro ponto crucial será a definição de papéis dentro da estrutura familiar e dentro da estrutura do negócio. A qualidade de filho é diferente da qualidade de executivo, que é diferente da qualidade de sócio. Não há nada de mal em querer tratar a fazenda como um clube, mas, por favor, abstenha-se de se intrometer no negócio. Curta e relaxe, mas não dê ordem aos capatazes e peões.
Por sua vez, no mundo jurídico, a constituição de duas holdings familiares, uma patrimonial, outra operacional [2], somente resolverá parte do problema. A chave para a solução é o acordo de sócios [3].
O acordo de sócios [4] é um instrumento parassocial que disciplina direitos e obrigações entre os sócios signatários, tais como, mas não se limitando, a compra e venda de ações, o direito de preferência, o exercício do direito a voto e o poder de controle [5], trazendo estabilidade para a família e para a empresa.
Nas sociedades familiares, os acordos de sócios também procuram alinhar a expectativa dos fundadores e dos sucessores, com regras de entrada [6] e saída de herdeiros da sociedade, sempre visando à perpetuidade da organização, a harmonia de seus membros e o propósito comum de preservar o legado familiar.
Das diversas cláusulas [7] comuns em acordos de sócios, duas valem destaque neste artigo.
A primeira é a cláusula que disciplina o direito de retirada do sócio descontente em participar da sociedade. Se bem escrita, já regulamenta não só a forma de avaliação da sociedade (patrimônio), como também a forma de pagamento da participação do sócio retirante, sem descapitalizar a empresa. Sim, muitas vezes o valor do patrimônio imobilizado é centenas de vezes maior do que o disponível para o pagamento dos sócios (basta lembrar de uma grande propriedade rural).
A segunda cláusula é a que dispõe sobre o comando da sociedade. Assim, nela serão descritos os quóruns de deliberação e as matérias obrigatórias a serem submetidas ao conclave. Não só a transparência estará assegurada, como também o impedimento de decisões arbitrárias sobre assuntos sensíveis (empréstimos, compra de novas propriedades, alienação de participação societária, aumento de capital social etc.) estarão protegidos [8].
Aqui vale um parêntese: o protocolo familiar não é o acordo de sócios. Aquele documento deve refletir os princípios e regras da família, seus valores e crenças. Pode também disciplinar o uso dos bens (casa de praia, barco, fazenda etc.) da família pelos seus membros, elegendo inclusive um conselho familiar, mas não é o documento societário que regerá os direitos, obrigações e deveres dos familiares enquanto sócios da empresa familiar.
É importantíssimo que o acordo de sócios seja discutido com muita calma e parcimônia entre os membros da família para que haja a sensação — real — de justiça. Mais importante ainda é que o acordo seja revisitado de tempos em tempos e de geração em geração, atualizando e/ou flexibilizando as suas regras, refletindo a real cultura da família e incentivando todos os membros – da família – a atuarem conjuntamente.
A ideia de justiça, sabemos, não é a mesma para todos, mas com conversas e reflexões certamente o grupo familiar pode elaborar um documento que reflita os direitos, obrigações e deveres de cada membro, prevenindo conflitos presentes e futuros.
Para quem quiser saber mais, recomendo a leitura do artigo: Fairness in families firms de Christine Blondel – < https://www.familygovernance.net/en/fairness-family-firms > Acesso em 20/04/2022
(Artigo publicado no site www.jota.info, em 28 de Abril de 2022).
[1] Aqui não se trata de justiça distributiva ou punitiva e, sim, a justiça como um processo de tomada de decisão em contínua evolução de geração em geração.
[2] Para relembrar o tema, por favor consulte o segundo artigo desta série: Holdings familiares, blindagem patrimonial e divisão de poder: verdades e lendas (Holdings familiares, blindagem patrimonial e divisão de poder (jota.info)) acesso aos 17/04/22
[3] O acordo de sócios é gênero da espécie acordo de acionista e acordo de quotista, o primeiro utilizado na sociedade anônima, o segundo utilizado na sociedade limitada.
[4] Fábio Ulhoa Coelho assim define: “No Brasil, os acionistas interessados em estabilizar relações de poder no interior da companhia podem negociar obrigações reciprocas que garantam certa permanência nas posições. As principais matérias de composição negocial, neste caso, são o exercício do direito de voto e a alienação das ações. […] Assim, sobre o exercício do voto de vontade e demais aspectos das relações societárias, os acionistas podem livremente entabular as tratativas que reputarem oportunas à adequada composição de seus interesses.”( Volume 2: Sociedades – 19ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2015)
[5] Art. 118, LSA: Os acordos de acionistas, sobre a compra e venda de suas ações, preferência para adquiri-las, exercício do direito a voto, ou do poder de controle deverão ser observados pela companhia quando arquivados na sua sede.
[6] Caso um dos herdeiros se divorcie, o genro ou nora entrará na empresa familiar? Este é um dos temas que podem ser tratados no acordo de sócios
[7] São exemplos de cláusulas comuns em acordos de sócios: tag along, drag along, método de solução de conflito (mediação e arbitragem) e lock-up.
[8] Agravo de instrumento. Ação anulatória. Pedido de suspensão dos efeitos de assembleia que deliberou aumento de capital da empresa agravada. Alegação de indevida subscrição de ações por empresas alheias ao quadro societário, em violação ao acordo de acionistas. Cláusula de não incidência de preferência para negociações dentro de grupo empresarial familiar. Empresas subscritoras que possuem membros comuns ao grupo referido. Comprovação de oferta, ao agravante, de capitalização do mútuo, nas mesmas condições. Renúncia expressa ao direito de preferência, na assembleia, que se deu por representantes regulares. Decisão mantida. (realce nosso) (TJ-SP – AI 20626156520188260000 SP 2062615-65.2018.8.26.0000, Relator: Cláudio Godoy, Data do Julgamento: 30/11/2018, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 30/11/2018)
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