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Holdings familiares, blindagem patrimonial e divisão de poder: verdades e lendas

Holding familiar não é um tipo societário novo, mas uma sociedade empresária cujos sócios são da mesma família.


As famosas holdings familiares são o primeiro instrumento societário que as famílias questionam e demandam no planejamento patrimonial sucessório, como forma de organização do patrimônio e sua “blindagem”. A holding tem também outras duas vantagens latentes: permite a organização do poder dentro do seio familiar e é o pontapé inicial no processo de governança corporativa[1], já dividindo as funções de cada membro dentro dos negócios (sócios e administradores, por exemplo).


As holdings[2] nada mais são que sociedades, limitadas ou anônimas[3], cujo objeto social é a administração de bens próprios[4] da família, sem a produção de bens ou serviços. Elas podem ser patrimoniais, quando recebem os bens imóveis; e operacionais, quando controlam os negócios. Nada impede que a mesma sociedade empresária seja a detentora do patrimônio e dos negócios, mas, para fins de planejamento e organização, na maioria dos casos é recomendável, ao menos, constituir duas sociedades. Por fim, quando os sócios são membros de uma mesma entidade familiar, denomina-se holding familiar. Ou seja, a holding familiar não é um tipo societário novo e sim uma sociedade empresária que possui como sócios membros da mesma família.


Pesquisa da KPMG[5] aponta que 49% das empresas familiares optam pela sociedade limitada, 40% são sociedades anônimas fechadas e 6% são sociedades anônimas abertas. Já no âmbito do poder de controle, 35% são controladas através de holdings (controle indireto), 29% por pessoas físicas (controle direto) e as demais possuem controle compartilhado entre diversos membros da família.


Ora, não existe um modelo unânime de estrutura societária, cada caso é um caso. Como observado no primeiro artigo desta série, a resposta à difícil equação entre patrimônio, poder e sentimento é sempre um grande “depende”! A decisão de se optar por um dos dois tipos societários citados acima dependerá certamente dos objetivos da família, do grau de proximidade e confiança, da necessidade de captação de recursos no mercado financeiro, da divisão e tamanho dos negócios e assim por diante.


Entretanto, com a sociedade limitada se aproximando cada vez mais da anônima em alguns aspectos — como na possibilidade de quotas preferenciais, conselho de administração, quotas em tesouraria e conselho fiscal[6] — e a anônima, por sua vez, se aproximando cada vez mais da limitada — inclusive com as novas disposições legais sobre a sociedade anônima simplificada[7] e a possibilidade de dissolução parcial de sociedade anônima familiar[8] —, a opção por um dos dois tipos societários deve, realmente, ser sopesada com os objetivos da família a médio e longo prazo. Uma família numerosa, com vários irmãos, primos, netos, com alguns se dedicando ao negócio familiar e outros não, provavelmente deveria optar pelo tipo societário do anonimato; por outro lado, uma família pequena, com todos trabalhando no negócio familiar, poderia se inclinar pela sociedade limitada.


E quanto ao famigerado aspecto da “blindagem”[9] patrimonial? É cediço que as holdings não blindam o patrimônio, elas podem criar “camadas” de proteção contra a investida de credores, com o objetivo de salvaguardar o patrimônio da família. São amplamente aceitos nos tribunais pátrios a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, a limitação de responsabilidade dos sócios e a desconsideração da personalidade jurídica[10] em caso de desvio de finalidade ou confusão patrimonial, conforme disciplina o artigo 50 do Código Civil[11].


Nesse passo, a holding ajudará na “blindagem” do patrimônio, mas dependerá da conduta dos sócios e administradores (muitas vezes, nos negócios familiares, a mesma pessoa), para que não seja atingido o patrimônio pessoal destes.


O último ponto a ser abordado é a possibilidade real de manter o controle das holdings familiares com o patriarca ou matriarca (fundadores). O controle é detido por quem vence as deliberações sociais (assembleias ou reuniões de sócios) e elege a maioria dos administradores[12]. Assim, com arranjos societários, seja com o controle direto pelo fundador da família, seja através da doação de participação societária com reserva de usufruto, ou ainda por meio de acordo de sócios, é possível respeitar a vontade da família, do sucedido e do sucessor, sobre o poder dentro da sociedade empresária.

Naturalmente, a introdução de regras de governança corporativa poderá ajudar a balizar poderes, trazer transparência na gestão, com informações claras e precisas sobre os negócios, implementar procedimentos para as reuniões e alçadas para a tomada de decisões. É importantíssimo avaliar a necessidade da formação do conselho de administração e/ou do conselho familiar para que sejam possíveis discussões — saudáveis — sobre os rumos dos negócios e da família.


Se é lenda que há blindagem total do patrimônio, certamente é verdade que é possível respeitar os desejos e anseios dos fundadores, com estruturas societárias que atendam a intrincada fusão entre patrimônio, poder e sentimentos em uma família.


Para quem quiser saber mais, recomendo a leitura da Cartilha do IBGC “Análises e Tendências 5: Empresas familiares”, disponível em https://conhecimento.ibgc.org.br/Paginas/Publicacao.aspx?PubId=24059.


(Artigo publicado no site www.jota.info, em 14 de Abril de 2022).


[1]Segundo o IBGC, governança familiar é o: “Sistema pelo qual a família desenvolve suas relações e atividades empresariais, com base em sua identidade (valores familiares, propósito, princípios e missão) e no estabelecimento de regras, acordos e papéis. Seu objetivo é obter informações mais seguras e com mais qualidade na tomada de decisões, auxiliar na mitigação ou eliminação de conflitos de interesse, superar desafios e propiciar a longevidade dos negócios.”(realce nosso) IBGC. Governança Familiar: dicionário da governança. Disponível em: https://www.ibgc.org.br/blog/governanca-familiar. Acesso em: 04. abril 2022.

[2]“ECON. empresa que detém a posse majoritária de ações de outras empresas, ger. denominadas subsidiárias, centralizando o controle sobre elas [De modo geral a holding não produz bens e serviços, destinando-se apenas ao controle de suas subsidiárias].” HOUAISS, Dicionário. Holding. Brasil: Objetiva, 2007. 1544 p.

[3]É possível outros tipos societários, mas a sociedade limitada e a sociedade anônima são as mais utilizadas.

[4]O objeto social pode ser amplo, como exemplos: desenvolvimento de empreendimentos imobiliários, incorporação, compra, venda e locação, administração de bens próprios, assessoria empresarial e participação no capital de outras sociedades no país e no exterior.

[5]KPMG. Retratos de Família: um panorama das práticas de governança corporativa e perspectivas das empresas familiares brasileiras. Disponível em: https://assets.kpmg/content/dam/kpmg/br/pdf/2021/02/Retratos-Familia.pdf. Acesso em: 04. abril 2022.

[6]Instrução Normativa DREI nº 81/2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-n-81-de-10-de-junho-de-2020-261499054. Acesso em: 04. abril 2022.

[7]Alterações feitas por meio das leis: Lei do Ambiente de Negócio (Lei nº 14.195/2021) e Marco Legal das Startups (Lei Complementar nº 182/21). Alguns exemplos: (1) possibilidade de um único diretor; (2) não necessidade de diretor residente no Brasil; (3) a publicação de balanços de sociedades com faturamento abaixo de R$ 78 milhões de reais poderá ser realizada de forma eletrônica.

[8]AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DECISÃO DA PRESIDÊNCIA. RECONSIDERAÇÃO. AÇÃO DE DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE. PROCESSUAL CIVIL E SOCIETÁRIO. TRIBUNAL LOCAL CONCLUIU PELA LEGITIMIDADE DOS SÓCIOS DISSIDENTES PARA PROMOVER A AÇÃO. REEXAME FÁTICO E PROBATÓRIO DOS AUTOS. SÚMULA 7/STJ. ALEGAÇÃO DE OFENSA A DISPOSITIVO DISSOCIADO DA TESE RECURSAL. SÚMULA 284/STF. SOCIEDADE ANÔNIMA DE CUNHO FAMILIAR. DISSOLUÇÃO DA SOCIEDADE POR QUEBRA DA AFFECTTIO SOCIETATIS E DA CONFIANÇA ENTRE OS SÓCIOS. POSSIBILIDADE. SÚMULA 83/STJ. AGRAVO INTERNO PROVIDO PARA CONHECER DO AGRAVO E NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL. 1. Agravo interno contra decisão da Presidência que conheceu do agravo para não conhecer do recurso especial, devido à ausência de impugnação específica dos óbices contidos na decisão de admissibilidade do recurso especial. Reconsideração. 2. O Tribunal a quo, analisando o acervo fático-probatório carreado aos autos, concluiu que os sócios retirantes possuem legitimidade para propositura da ação, pois possuem mais de 5% do capital social. A modificação do referido entendimento demandaria o reexame de provas. […] 4.”A jurisprudência do STJ reconheceu a possibilidade jurídica da dissolução parcial de sociedade anônima fechada, em que prepondere o liame subjetivo entre os sócios, ao fundamento de quebra da affectio societatis” (realce nosso) (REsp 1.400.264/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/10/2017, DJe de 30/10/2017). 5. Agravo interno provido para conhecer do agravo e negar provimento ao recurso especial. (realce nosso) (AgInt no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1539920 – RS – Data do Julgamento – 18/05/2020)

[9]O termo blindagem induz à ideia de revestimento ou cobertura, sendo esta utilizada como forma de proteção patrimonial.

[10]INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. Decisão que deferiu o pedido de desconsideração da personalidade jurídica da devedora e autorizou a inclusão de terceira empresa no polo passivo da execução Pessoa jurídica devedora que foi constituída como “holding” para participação societária em terceira empresa, conjuntamente com seu próprio controlador – Hipótese em que, após o ajuizamento da execução, a empresa devedora retirou-se de sociedade da qual detinha 90% do capital social, ocasião em que foi substituída por terceiras empresas pertencentes ao grupo familiar de seu controlador Sucessivas alterações na estrutura social da empresa, realizadas entre o próprio grupo familiar controlador, que culminaram no esvaziamento patrimonial da pessoa jurídica sujeita à execução Circunstâncias dos autos que evidenciam a ocorrência de desvio de finalidade e confusão patrimonial aptos a autorizar a desconsideração da personalidade jurídica, nos termos do art. 50, do Código Civil Ausência de comprovação de prejuízos a terceiros acionistas RECURSO NÃO PROVIDO. (realce nosso) (TJ-SP – AI: 2034697-18.2020.8.26.0000, Relator RENATO RANGEL DESINANO, Data de Julgamento: 26/10/2020, Tribunal da Justiça do Estado de São Paulo).

[11]Art. 50 Código Civil. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

[12]Art. 116 Lei das Sociedades Anônimas. Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que: a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembleia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia.

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