Chegou aos jornais a sentença proferida pela juíza Claudia Guimarães dos Santos, de São Paulo, condenando um locador a indenizar pelos danos morais que provocou quando proibiu o locatário de entrar no imóvel devido à sua orientação sexual. A locação já havia sido contratada.
A atitude desse locador é retrato desses tempos de intolerância, e dentre tantos e tantos pensadores e artistas que sempre enxergam mais agudamente o que ocorre, destaco o álbum póstumo de Elza Soares (Rio de Janeiro, 1930-2022) pois lá está: “Tá todo mundo atirando pedra/ Com a vida cheia de pecado/Cada um fazendo a sua regra. Ninguém mais pode pensar o contrário/Mas eu apanho de todos os lados/Eles dizem que eu sou polêmica”.
Intolerância, ataques indiscriminados quanto a comportamentos, cor, religião, opção política; é profundo o desprezo que provocam, dá um desânimo enorme lidar com sujeitos que ajam assim. Como é frustrante termos de tratar disso, ainda, no século 21!
Afinal, é repetido ao menos há 250 anos. Voltaire (França, 1694-1778) dizia que “A primeira lei da natureza é a tolerância; já que temos todos uma porção de erros e fraquezas; indiscutivelmente, uma lição de vida em sociedade.
É uma infelicidade, porque o mundo evoluiu demais, a ciência alcançou estágios impressionantes, a sociedade mudou, o jeito de viver e morar também mudou. Porém, volta e meia, surge um fóbico qualquer, restando aos psiquiatras a explicação desses comportamentos ofensivos, limitados, histéricos.
Aqui, examinamos não as causas, mas as consequências. E, nas relações locatícias é preciso saber como lidar com manifestações de estranhamento ao outro: são atos execráveis (no mundo todo) e ilegais, até mesmo afrontando a Constituição Federal. Ora, evidentemente impedir a locação por razões tais, consistirá preconceito punível; estragar a relação locatícia já celebrada implicará – se pouco – na multa contratual, desde que ferido primordial dever do locador, de manter o uso pacífico, tranquilo do imóvel locado. Indenizações por danos emergentes ou lucros cessantes caberão, outrossim.
Mas não é só, pois esse comportamento moralmente descompassado assume proporções maiores que as restritas ao relacionamento contratual.
Veja-se (nos tempos em que vivemos, é crucial recordarmos e mostrarmos as bases de nossa sociedade, os fundamentos legais de nossa convivência) que afrontam a Constituição Federal, cujo artigo 3º traça como objetivo fundamental do país “construir uma sociedade livre, justa e solidária”; cujo art. 4º claramente repudia “terrorismo e racismo” (interessantemente colocados no mesmo inciso); cujo art. 5º proclama que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza…”, estando no inciso X a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sendo a violação desse preceito, indenizável; no inciso XLI que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”; e no inciso XLII, que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.
Por que não me referi à homofobia objetivada nesta análise, mas citei o racismo (que merecerá profundos estudos em outra oportunidade)?
Porque em outubro de 2019, o STF, em julgamento relatado pelo ministro Celso de Mello decidiu (vale realçar este trecho): “Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989”. Aí a resposta: o STF entendeu haver identidade entre os crimes de homofobia e de racismo.
Além da nefanda convivência com esses agentes criminosos; além de se sujeitarem a condenações criminais; além das multas contratuais e indenizações por danos materiais, existe uma outra evidência, importante: essas condutas acarretam indenizações pelos danos morais impingidos.
No julgamento com que iniciei estas notas, a condenação pelo dano moral verificado foi fixada em R$ 30 mil. Não existe uma tabela legal com os valores de indenização, e assim, cabe aos juízes a análise de cada caso concreto levado a eles.
Por isso, interessa ver alguns exemplos de decisões sobre casos de homofobia: o desembargador Christiano Jorge, do Tribunal de São Paulo confirmou a indenização fixada em R$ 5 mil pela Juíza Juliana Pitelli num caso em que o subsíndico agrediu verbalmente (conduzindo-se com homofobia) um condômino; no TRT de Minas Gerais, empregados assim agredidos verbalmente foram indenizados em R$ 5 mil (Des. Marcos Pendo de Oliveira) e R$ 8 mil (Des. Lucilde D `Ajuda Lyra de Almeida); no TRT – 7, em Salvador, o Des. Francisco José Gomes da Silva confirmou sentença da Juíza Ana Paula Barroso Sobreira que condenou a empresa a arcar com indenização de R$ 95 mil. Ou seja: é certo que a condenação virá, o que oscila é o valor.
Ainda nessa breve recordação, existe algo mais que mudou com o tempo: se é fato que na época da edição da lei, em 1989, as provas eram mais difíceis, hoje em dia elas são imediatas: basta uma imagem das câmeras de segurança, uma mensagem por WhatsApp, um vídeo por celular que todos usam. Enfim, o faltoso não escapará, tudo estará documentado, à fácil disposição do julgador.
Diante dessas evidências, como lidar com o agressor? Creio que de uma maneira, somente: no âmbito social, noticiando imediatamente a conduta às autoridades competentes, disponibilizando na forma da lei as provas do ilícito. No âmbito das relações privadas, contratuais, dando início aos procedimentos de comprovação do ato e da respectiva punição pela via judicial. Afinal, além de abomináveis, esses atos somente trazem dor aos vitimados e espraiam malefícios aos demais. Devem ser punidos, legalmente, sem frouxidão. Não são brincadeira. Mais uma citação, agora de Martin Luther King (EUA, 1929-1968, assassinado em Memphis por um intolerante): “O que me preocupa não é o grito dos maus, é o silêncio dos bons”. Façamos o justo barulho!
Artigo publicado originalmente no site www.imobireport.com.br, em 09 de Agosto de 2023.
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