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Planejamento patrimonial sucessório: morri, e agora?

Cabe aos herdeiros seguirem a vontade do autor da herança, seja no testamento, seja pelos acordos de sócios


No sexto artigo desta série[1] tratei sobre a difícil escolha do regime de bens do casamento, analisando os diversos fatores envolvidos na tomada de decisão do casal, convocando os leitores para lerem, neste texto, a resposta à segunda pergunta feita naquele estudo: “b) minha nora (ou meu genro) herdará o meu patrimônio?”.


Como já ficou claro – espero – desde o primeiro artigo sobre planejamento patrimonial sucessório, não existe regra certa ou errada ou resposta pronta para os anseios familiares. Cada caso é um caso. Cada família é uma família.


Recentemente, terminei um complexo caso: uma senhora do interior de Minas Gerais, no auge dos seus 94 anos, viúva e com sete filhos, me pediu para que a divisão entre eles fosse justa quando ela morresse. Vamos chamá-la aqui de D. Maria.

Justa como, perguntei?

  1. Maria tinha duas fazendas produtivas, ambas com pecuária e agricultura. Uma somente dela e a outra com três dos sete filhos. Queria que nenhum filho saísse prejudicado, mas não gostaria que os filhos que trabalhavam no negócio familiar fossem “lesados” pelos irmãos que não se interessavam pelo agronegócio. Por outro lado, não queria que os filhos “urbanos” ficassem presos às terras e sabia das dificuldades de liquidez que seriam enfrentadas na opção de aliená-las.

Lúcida, tinha mais três “desejos”, lembrando que o filho mais novo já tinha quase 60 anos: 1) não queria ficar “sem nada” até morrer[2]; 2) como ela sustentava dois filhos com valores mensais, ela não queria, de forma alguma, que de uma hora para outra os valores pagos a eles mensalmente cessassem; e, por fim, me confidenciou: 3) gostaria que a nora, casada com o filho mais novo, recebesse uma parte da herança. Segundo ela, nada mais justo: era esta nora quem a ajudava todos os dias, seja nos negócios, seja na sua vida pessoal.


A primeira parte dos “quereres” foi resolvida por meio do direito societário e contratual e, para não ser repetitivo, remeto aos primeiros artigos desta série, quando tratei das holdings e dos acordos de sócios, principalmente.


Porém, a parte final é o objeto deste artigo. Posso privilegiar um filho ou uma nora? Ou, ao contrário, posso “desprestigiar” algum filho? E talvez, uma pergunta que estava subliminar: cônjuges dos filhos têm direito a herança?


No direito sucessório, regulado pelo Código Civil, é claro que “a herança se transmite, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários[3], sendo que o artigo 1.829[4] disciplina a ordem de vocação hereditária[5], evidenciando que os descendentes e o cônjuge são herdeiros. E na falta dos filhos, os pais[6].


Por sua vez, o artigo 1.846, do CC[7], esclarece que os herdeiros necessários[8] têm direito à legítima, que é correspondente a cinquenta por cento dos bens deixados na herança. Cálculo de padaria: se você morrer hoje com R$ 100, metade deve ir para os herdeiros necessários e os outros R$ 50 para quem você quiser por meio de testamento[9].


Algumas respostas já podiam ser dadas à D. Maria:

  • a) os filhos são herdeiros legítimos e, salvo se houver testamento, herdarão todo o patrimônio. Aos 94 anos ela não tinha mais pais vivos e como alertado no início era viúva, não possuindo nenhum companheiro;[10]

  • b) é possível privilegiar um filho, uma nora ou um amigo desde que reservada a legítima. Ou seja, nada impede um filho de receber sua parte da legítima – no caso um sete avos – e ainda 50% do patrimônio disponível, totalizando oito quatorze avos. Para tanto deve ser elaborado um testamento;[11]

  • c) os cônjuges dos filhos não possuem direito à herança, mas se forem casados no regime de comunhão total de bens[12], acabarão por “herdar”, pois a herança integrará o patrimônio.

Para finalizar a consulta de D. Maria ainda falta lhe esclarecer mais três pontos.


A exclusão da herança somente ocorre em atos graves contra o autor da herança (difamação, violência, fraude, homicídio etc.) e sempre por sentença judicial. No Brasil a herança é quase sagrada[13] e o herdeiro, em regra, tem direito a ela. O que é possível, se não for o caso de exclusão da herança, é diminuir o percentual até o limite legal.


Os filhos sustentados por D. Maria poderiam receber um adiantamento da herança através de doação, a qual deverá respeitar a legítima após o seu falecimento[14]; ou D. Maria pode fazer um seguro de vida em favor deles (ou mesmo uma previdência privada, que não compõe a herança). Assim que ela falecer, eles receberão o valor do prêmio do seguro e poderão se sustentar até a família se reorganizar e houver o pagamento das distribuições de lucro da holding familiar. O único problema estará, talvez, na tal justiça entre os irmãos: o valor do seguro não entra na herança[15].


Um último ponto, sempre levantado no final da reunião[16]: dívida não se transmite (não era o caso de D. Maria), mas lógico que o patrimônio, ao ser inventariado, sofrerá ajuste de acordo com ativos e passivos. Se não sobrarem ativos, não haverá patrimônio a ser transferido aos herdeiros.


Morri, e agora?


Cabe aos herdeiros seguirem a vontade do autor da herança, seja nas suas disposições de última vontade (testamento), seja através dos acordos de sócios e protocolos familiares. Aliás, o planejamento pode ajudar, mas a única forma de “descansar em paz” é insistindo na cultura familiar ou como diz D. Maria: “criei bem meus filhos”.


(Artigo publicado no site www.jota.info, em 23 de Junho de 2022).


Para quem quiser saber mais, recomendo a série “Succession”, da HBO, sobre uma família rica e poderosa, com inúmeros problemas sucessórios.

[2] Desejo solucionado pelo instrumento de doação de quotas com usufruto político e econômico por D. Maria.

[3] Art. 1.784 CC. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.

[4] Art. 1.829 CC. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (artigo 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III – ao cônjuge sobrevivente; IV – aos colaterais.

[5] Sugiro a leitura do Recurso Extraordinário nº 646.721, disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15339200943&ext=.pdf e do Recurso Extraordinário nº 878.694, disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15339019694&ext=.pdf

[6] Vale esclarecer: “Ao herdeiro necessário a lei assegura o direito à legítima, que corresponde à metade dos bens do testador (CC, artigo 1.846). A outra, denominada metade ou porção disponível, pode ser deixada livremente. Se não existe herdeiro necessário, a liberdade de testar é plena, podendo o testador transmitir todo o seu patrimônio a quem desejar, exceto às pessoas não legitimadas a adquirir por testamento (arts. 1.798 e 1.801)”. GONÇALVES, Carlos R. Direito civil brasileiro v 7 – direito das sucessões. Editora Saraiva, 2021. 9786555590654. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555590654/. Acesso em: 01 jun. 2022.

[7] Art. 1.846 CC. Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima.

[8] Art. 1.845 CC. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.

[9] Art. 1.857 CC. Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte. § 1 o A legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento. § 2 o São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado.

[10] Existindo união estável o companheiro também terá direito a herança.

[11] Nas palavras de Clóvis Beviláqua, ainda em 1944: testamento é o ato personalíssimo, unilateral, gratuito, solene e revogável, pelo qual alguém, segundo as prescrições da lei, dispõe, total ou parcialmente, de seu patrimônio para depois da sua morte; ou nomeia tutores para seus filhos; ou reconhece filhos naturais; ou faz outras declarações de última vontade.” BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil commentado, vol. VI, Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1944, 5ª ed., p. 89.

[12] Art. 1.667. O regime de comunhão universal importa a comunicação de todos os bens presentes e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas, com as exceções do artigo seguinte

[13] EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DECLARATÓRIA – HERANÇA – RENÚNCIA – DOAÇÃO – PERÍCIA – AVALIAÇÃO DO BEM – VISTORIA INTERNA – DESNECESSIDADE – VALOR – ROL TAXATIVO DO CPC – RECURSO REPETITIVO – RESP 1.696.396 (TEMA Nº 988) – RELEVÂNCIA DAS RAZÕES RECURSAIS. “[…] A legítima é a metade do patrimônio, que é indisponível ao seu titular, para fins de doação (gratuita), em sua vida ou em sua morte, sob pena de nulidade. Por óbvio, se os tais 50% não pertencem ao titular do patrimônio, ele não os pode doar, nem está sujeito à livre disposição do Judiciário. E ao herdeiro necessário (artigo 1845) é reservada uma situação de vantagem em relação aos demais herdeiros, correspondente à legítima que, matematicamente, equivale à metade da herança, nos exatos termos do artigo 1789 e 1846, calculada sob a forma dos arts. 1847 e 2002 e seguintes do CC/02. Essa ficção jurídica criada pelo Direito Sucessório para privilegiar a classe de herdeiros necessários – a legítima ou metade indisponível da universalidade hereditária – é estabelecida por vantagem jurídica sobre o cálculo matemático do todo da herança (100%: ativo menos o passivo), que é dividida em duas partes matematicamente iguais (50%), mas juridicamente distintas, porque metade da herança é constituída pela legítima e a outra metade é disponível para o seu titular (o falecido) […].” (TJ-MG – AI: 10480140168927003 Patos de Minas, Relator: Alice Birchal, Data de Julgamento: 10/11/2020, Câmaras Cíveis / 7ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 13/11/2020)

[14] Art. 544. A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança.

[15] Art. 794. No seguro de vida ou de acidentes pessoais para o caso de morte, o capital estipulado não está sujeito às dívidas do segurado, nem se considera herança para todos os efeitos de direito.

[16] D. Maria ainda poderia elaborar uma “declaração vital”, instrumento de diretriz de última vontade enquanto viva, com disposições e preceitos, por exemplo, sobre cuidados/procedimentos médicos. Confira-se: Inicialmente, e ainda no cotidiano, tratado como testamento vital ou testamento biológico, há também a possibilidade de a pessoa estabelecer por instrumento próprio a forma de tratamentos, procedimentos médicos/clínicos e cuidados a que pretende ser submetido quando estiver adoentado e sem condições de manifestar a sua vontade. Não é propriamente testamento, na medida em que a vontade declarada, pelo seu conteúdo, é para ser respeitada e cumprida ainda em vida, e não após a morte; daí a melhor identificação como diretivas antecipadas de vontade”. NANNI, Giovanni E. COMENTÁRIOS AO CÓDIGO CIVIL: DIREITO PRIVADO CONTEMPORÂNEO. Editora Saraiva, 2021. 9786555591934. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555591934/. Acesso em: 31 mai. 2022. E ainda o difícil caso quando se trata de paciente que não autoriza a transfusão de sangue: “Assim, tendo a apelante apresentado documento de “diretivas antecipadas de Vontade” (fls. 38), se identificando como Testemunha de Jeová e recusando à transfusão de sangue alogênico, razão lhe assiste em querer ver reformada a r. sentença recorrida, ainda que a transfusão já tenho ocorrido, por determinação cautelar anterior. Certo é que a teoria da colisão de direitos fundamentais realmente não justifica a realização de terapia médica compulsória em paciente adulto em nome do direito à saúde ou do direito à vida, e o Poder Público não pode destituir o indivíduo de sua liberdade evidenciada na sua declaração antecipada de vontade, o que feriu sua dignidade.” Apelação Cível – Tutela de Urgência Auto Satisfativa – Transfusão de sangue – Testemunha de Jeová – Direitos Fundamentais – Sentença provida a fim da realização de transfusão de sangue contra a vontade expressa da Apelante – Possibilidade – Convicção religiosa que não pode prevalecer perante a vida, bem maior tutelado pela Constituição Federal – Sentença mantida – Recurso não provido. (TJ-SP – AC: 10032433420188260347 SP 1003243-34.2018.8.26.0347, Relator: Marrey Uint, Data de Julgamento: 20/08/2019, 3ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 09/03/2020)

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