Alcance do dano sofrido por participante de reality show
- Ana Lúcia Ortigosa
- 24 de mar.
- 4 min de leitura

Não é novidade dizer que o ser humano é um ser social. Embora, se reconheça também, o apreço por momentos de solitude, a verdade é que o homem além de apreciar a companhia do outro também gosta de observar e opinar sobre a vida alheia. Para Aristóteles isso só ocorre, porque o homem é um ser carente que precisa estar com outro alguém para se sentir feliz, sendo necessário, para isso, o convívio em coletividade dentro das polis.
O que seduz a curiosidade do homem em querer participar, mesmo que indiretamente, da forma como o outro irá viver é o poder que isso transpõe.
Imagine o quanto atrai alguém a capacidade de poder determinar a escolha do terceiro e, ainda por cima, não ser afetado por nenhuma dessas opções, é exatamente essa a ideia fascinante dos reality shows. É algo único e encantador. Conquanto defenda o Cristianismo que Deus deu livre arbítrio para cada indivíduo fazer do seu caminho aquilo que mais lhe apetece, monitorar a vida e até mesmo determinar o futuro de alguém como lhe convém são situações animadoras para qualquer ser vivo. Contudo, questiona-se se as situações desenvolvidas durante os reality shows podem afetar a esfera individual dos telespectadores ou elas estão protegidas pelo manto da liberdade de expressão exercido durante o programa de entretenimento.
Em 1948, George Orwell escreveu a obra 1984, o qual dizem ter sido inspiração para John de Mol criar um dos mais famosos reality show do mundo, Big Brother. A obra se passa em um país fictício chamado Oceânia; lá, todos os habitantes eram monitorados e gravados por teletelas pelo Big Brother (vencedor da guerra global) e consequentemente não podiam exercer sua privacidade e intimidade.
Paradoxo pensar que o clássico que deu vida ao referido reality e criticava veemente a violação dos direitos da personalidade (intimidade e privacidade) pelo autoritarismo estatal é tão dispare ao que se vê atualmente no programa de TV. Afinal, milhares de pessoas se inscrevem todos os anos para ficarem confinadas em uma casa e serem observadas vinte quatro horas por câmeras, trocando deliberadamente sua privacidade e intimidade por fama e dinheiro.
E, assim como na vida em sociedade, nos reality shows diversos desentendimentos entre os participantes ocorrem e ato contínuo são proferidas ofensas verbais e até mesmo físicas. Ocorre que algumas dessas agressões ultrapassam a esfera do programa e de seus participantes e podem atingir um ou mais telespectador.
É possível judicializar?
Ora, não há dúvida de que aquele participante que se sentir lesado possa fazer uso do instituto da responsabilidade civil para obter reparação do dano que sofreu. Porém, considerando as peculiaridades dos reality shows, um telespectador, familiar ou não do participante, pode utilizar-se do mesmo meio caso se sinta igualmente ofendido?
Em 3 de abril de 2021 Rodolffo, participante do BBB, comentou que a peruca de uma fantasia de homem das cavernas era similar ao cabelo de João. Essa fala gerou repercussão nacional, pois diversas pessoas se sentiram ofendidas pela comparação feita com o cabelo crespo.
Além de João, qualquer pessoa que sinta sua dignidade violada poderia ajuizar ação de reparação civil contra Rodolffo? Caso houvesse essa possibilidade, não estaríamos diante de uma judicialização excessiva?
O ministro Luiz Fux, na época em que era presidente do Supremo Tribunal Federal disse que o STF não deveria se debruçar em assuntos que facilmente poderiam ser decididos em esferas próprias. Não se pode diminuir, no caso em espeque, a importância do diálogo, em quantas frentes for possível, da frase potencialmente racista do participante do reality show, bem como de utilizar-se, para sua defesa, tanto da Constituição, Código Civil e Código Penal pelo participante ofendido.
No entanto, por mais que algumas causas ou circunstâncias façam a priori pensarmos ser necessário levar determinada matéria ao Poder Judiciário, deve-se ter cautela e avaliar as consequências da referida decisão, principalmente no tocante a segurança jurisdicional. Será que quaisquer pessoas possam ao ver um programa de televisão ingressar em juízo contra algo que elas acreditam terem sido ofendidas? Isso não acabaria, inclusive, desvirtuando, às vezes, uma causa nobre e de tanta luta por algumas classes. Não seria a banalização do exercício de petição?
Indubitavelmente todo dano, seja ele moral, material, ou até mesmo dano em potencial, deve ser indenizado. A lei civil é clara e não permite interpretação contrária. O que se perquire é se o suposto dano for causado durante um reality show com transmissão em rede nacional e não for proferido contra aquele que se sentiu ofendido, pode este ajuizar ação de indenização.
A ponderação deixa de ser entre o direito da livre manifestação versus honra/dignidade e passa a ser segurança jurisdicional versus honra/dignidade.
A análise da ponderação deverá ser realizada caso a caso para que de forma alguma um direito fundamental seja tratado com indiferença ou vulgarizado perante a má-fé de alguns.
Ledo engano seria acreditar que o que ocorre em um reality show deva se reduzir apenas àqueles que assinaram contrato de participação, pois se isso fosse verdade ouso dizer que estaríamos muito próximos de vivenciarmos um reality show como retratado no filme Jogos Vorazes, no qual claramente se faz uma crítica ao fanatismo em torno dos programas de realidade.
*Artigo publicado originalmente no site www.conjur.com.br, em 23/03/2025
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